Ana Vitorino: Gamelas que Guardam Sabores, Histórias e Raízes

Apresentação de Ana Vitorino como referência na produção artesanal de gamelas no Brasil

Ana Vitorino é uma das grandes representantes da arte de esculpir gamelas no Brasil. Seu ofício teve início em Três Lagoas (MS), onde aprendeu a lidar com a madeira e os saberes manuais transmitidos por gerações. Ao lado do esposo, Seu Zé, e com o apoio da filha Ancelma, Ana consolidou sua prática ao longo dos anos, e hoje concentra sua produção artesanal na cidade de Miranda, no Pantanal sul-mato-grossense. Suas gamelas, moldadas com cuidado e precisão, são mais que objetos funcionais — são testemunhos vivos de uma tradição familiar e regional.

Ao transformar troncos em utensílios de madeira, Ana Vitorino imprime nas gamelas a marca do tempo e da memória. Cada peça carrega a relação profunda com a natureza, a rotina do lar e as histórias da comunidade. Suas criações são reconhecidas não apenas pela beleza e utilidade, mas também por seu valor simbólico e afetivo — representando um modo de vida que se ancora no respeito ao ambiente, na partilha e no saber tradicional. Seu trabalho contribui para manter viva uma herança cultural ligada à terra e à alimentação como atos de cuidado e identidade.

Narrar a história de Ana Vitorino é um ato de valorização do que há de mais autêntico na cultura brasileira. Mestres populares como ela mantêm vivas técnicas e formas de fazer que não cabem apenas nos livros ou museus, mas que vivem no dia a dia, nos quintais e nas comunidades. Ao preservar essas trajetórias, resgatamos não apenas memórias individuais, mas também o conhecimento coletivo que molda nossa identidade cultural. É por meio de histórias como a de Ana que seguimos tecendo pontes entre tradição e futuro.

Terra, Família e Tradição

Ana Vitorino nasceu em Três Lagoas, município localizado na divisa entre Mato Grosso do Sul e São Paulo, onde cresceu em meio ao cerrado e às tradições familiares ligadas ao campo e ao trabalho manual. Desde a infância, viveu em contato com a natureza, aprendendo a observar o ritmo da terra e a respeitar os ciclos da vida rural. Foi nesse ambiente que sua formação cultural começou a se construir, entre histórias contadas à sombra das árvores e os gestos cotidianos que moldam uma vida simples, porém cheia de significado.

O ofício da madeira entrou na vida de Ana por meio de sua convivência com pessoas da comunidade e, especialmente, com seu esposo, Seu Zé, com quem compartilha há décadas a rotina de trabalho e criação. O entalhe surgiu como uma forma de complementar a renda familiar e logo se transformou em paixão. A paciência, o olhar atento para os veios da madeira e a destreza com as ferramentas foram sendo aperfeiçoados com o tempo — e esse saber, aprendido na prática, foi naturalmente sendo passado para sua filha Ancelma, que hoje trabalha com ela. A produção artesanal se tornou, assim, um elo entre gerações.

A madeira utilizada por Ana vem da própria terra onde vive — árvores caídas naturalmente ou reaproveitadas de maneira consciente, em respeito ao meio ambiente e às práticas sustentáveis. Cada gamela feita por suas mãos guarda uma ligação direta com o território: o cheiro da madeira recém-cortada, a textura das fibras, o calor das histórias contadas durante o entalhe. Para Ana, criar gamelas não é apenas esculpir um objeto, mas manter vivos os modos de vida tradicionais, onde o alimento, o afeto e a arte caminham juntos. É a terra que dá matéria, e é a tradição que dá forma.

A Arte das Gamelas

Foi em Três Lagoas (MS), em meio à vida simples do interior, que Ana Vitorino começou a transformar troncos em recipientes que acolhem muito mais do que alimento. A produção de gamelas surgiu de forma natural, quase como um prolongamento da vida cotidiana. Ao lado do marido, Seu Zé, ela aprendeu a olhar para a madeira com respeito e sensibilidade — não como um recurso bruto, mas como matéria viva, moldada pela experiência e pelo tempo. O que começou como necessidade logo se tornou ofício e, com o passar dos anos, transformou-se em expressão artística.

A produção artesanal das gamelas exige tempo, paciência e dedicação. Um dos tipos de madeira mais usados por Ana é o ipê — resistente, abundante no Cerrado e ideal para o entalhe preciso que o ofício exige. O processo começa com o corte da madeira, geralmente de árvores já caídas ou partes descartadas. Depois, vem a fase de escultura: a enxó, o machado, os formões e as grosas vão dando forma à peça. Cada etapa — desde a escavação, passando pela modelagem, secagem natural, até o lixamento e acabamento com óleo ou cera — é feita manualmente, respeitando o tempo da madeira e a intenção da peça.

Além das tradicionais gamelas ovais, Ana e sua família também desenvolvem peças com formatos inspirados na natureza e na cultura regional: folhas de árvores nativas, peixes, frutos e até utensílios estilizados que remetem ao Pantanal e ao Cerrado. Esses formatos não são apenas decorativos — carregam consigo uma identidade visual que conecta o objeto à paisagem, aos costumes e à memória coletiva. Em cada curva, uma história; em cada textura, um traço da região onde nasceram.

Mais do que recipientes, as gamelas de Ana são verdadeiros símbolos de partilha e afeto. Remetem às refeições em família, aos encontros à beira do fogão, aos saberes passados de geração em geração. Ao entalhar a madeira, Ana preserva um modo de vida centrado no cuidado, na escuta e na continuidade. Suas peças guardam histórias da terra e da gente que nela vive. São, ao mesmo tempo, utilitárias e poéticas — moldadas com a sabedoria de quem transforma o ordinário em arte e o cotidiano em legado.

Estética, Função e Afeto

As gamelas produzidas por Ana Vitorino carregam uma estética singular que une rusticidade e delicadeza. Suas peças são esculpidas em curvas suaves, com linhas que respeitam a anatomia natural da madeira — cada veia, nó ou ranhura é mantida e valorizada. O toque é aveludado, resultado de um acabamento caprichado, feito com lixas finas e, muitas vezes, finalizado com ceras naturais ou óleo vegetal. A textura final revela não apenas o cuidado manual, mas também uma intimidade com o material, como se Ana soubesse exatamente o que cada pedaço de madeira quer ser.

As gamelas de Ana não são apenas belas — são úteis. Podem servir para apresentar alimentos, compor mesas rústicas, ou mesmo como peças decorativas em ambientes sofisticados. Essa versatilidade fez com que suas criações ganhassem espaço não apenas em lares pantaneiros, mas também em casas urbanas de várias regiões do Brasil. Empresas as adquirem como brindes institucionais, valorizando a origem artesanal e o significado afetivo de cada peça. Em feiras de artesanato e exposições culturais, suas gamelas chamam atenção pela combinação de forma e função — objetos simples que se transformam em verdadeiras obras de arte.

Muitos turistas que visitam Miranda (MS), onde Ana vive atualmente com Seu Zé e a filha Ancelma, se encantam com suas peças. Levam gamelas para casa não apenas como lembrança de viagem, mas como objetos carregados de memória e identidade. “É uma peça viva”, disse certa vez uma visitante ao adquirir uma gamela em formato de folha. Em depoimentos colhidos durante feiras, clientes mencionam o prazer de usar algo feito à mão, com história, com alma. Há quem colecione suas gamelas, quem as ofereça de presente e quem as use diariamente na cozinha — todos unidos por um mesmo sentimento: o afeto que emana de cada peça moldada por Ana e sua família.

Sustentabilidade e Identidade Cultural

O trabalho de Ana Vitorino carrega, desde suas origens, um compromisso silencioso com a sustentabilidade. A madeira utilizada na confecção das gamelas é, em sua maioria, proveniente de árvores caídas ou de descarte, coletadas com responsabilidade e respeito ao ciclo natural do Cerrado. Ana e sua família evitam o desperdício, aproveitando ao máximo cada pedaço de tronco, galho ou raiz que possa ser transformado em arte. Esse cuidado com a matéria-prima reforça uma consciência ambiental que está presente no fazer diário, sem precisar de etiquetas ou certificações — é a sustentabilidade vivida na prática.

Cada gamela esculpida é também um gesto de preservação dos saberes ancestrais. Ana representa uma linhagem de artesãos que aprenderam observando, fazendo, errando e tentando de novo. Em tempos de produção em massa, sua arte reafirma o valor do tempo dedicado, da escuta do material e do vínculo entre o fazer e o sentir. O entalhe, o polimento, o acabamento: tudo é manual, tudo passa pelas mãos da família. Mais do que produzir objetos, Ana cultiva uma relação com a terra, com os ciclos naturais e com o modo de vida que valoriza a autonomia e a criatividade.

Em cada gamela vive uma história — da madeira, da artesã, do lugar onde nasceu. Esses objetos carregam os traços da cultura regional e se tornam, ao mesmo tempo, utilitários e símbolos. São itens de identidade, que falam da tradição alimentar, da partilha comunitária, dos encontros em torno da mesa. Ao espalhar suas peças por todo o Brasil, Ana também espalha as histórias de sua terra, levando um pouco do Pantanal e do Cerrado para dentro das casas. Suas gamelas não apenas servem — elas conectam, emocionam e resgatam memórias adormecidas.

Reconhecimento e Circulação

A trajetória de Ana Vitorino no artesanato brasileiro ultrapassa os limites da produção doméstica. Com suas gamelas esculpidas à mão, ela já participou de importantes feiras de artesanato e eventos culturais em diferentes regiões do país. Desde os tempos em que vivia em Três Lagoas (MS) até sua atual residência em Miranda, suas peças foram expostas em mercados regionais, festivais e mostras que valorizam o fazer manual e a cultura popular. Esses espaços foram fundamentais para ampliar o alcance de sua arte, conectar-se com outros artesãos e fortalecer a rede de valorização do artesanato tradicional.

Ao longo dos anos, Ana recebeu homenagens em seu município e em eventos voltados ao artesanato sul-mato-grossense. Embora não busque os holofotes, sua trajetória tem sido reconhecida como referência de resistência cultural e expressão artística. O que a diferencia não é apenas a técnica refinada, mas a profundidade de seu vínculo com a terra, a madeira e a tradição familiar — um legado construído em silêncio, mas com força e beleza inegáveis.

Hoje, suas gamelas estão presentes em casas de diversas regiões do país. São adquiridas por turistas que visitam Miranda, por apreciadores da arte popular e também por empresas e instituições que valorizam o artesanato autêntico como símbolo de identidade. Algumas peças já foram incluídas em acervos particulares de colecionadores e em mostras que destacam a produção artesanal do Centro-Oeste brasileiro. Lojas especializadas em arte popular e design sustentável também passaram a buscar suas criações, atraídas pelo equilíbrio entre rusticidade, sofisticação e história. A madeira moldada por Ana viaja, mas leva consigo o espírito da terra e das mãos que a talharam.

Mestra e Inspiração para Novas Gerações

Ana Vitorino não ensina apenas com palavras — ensina com o ritmo do entalhe, com a paciência do polimento, com o respeito à madeira e à natureza. Em sua casa, o ofício da gamela é vivido como cotidiano, e essa vivência tem se transformado em aprendizado para quem a cerca. Ao lado do marido, Seu Zé, e da filha Ancelma, que hoje participa ativamente da produção, Ana compartilha o que sabe como quem passa uma receita de família: com afeto, cuidado e firmeza.

Não são apenas seus filhos e netos que têm acesso ao seu conhecimento. Ana já participou de encontros e oficinas em feiras culturais, espaços comunitários e ações de incentivo ao artesanato local, nos quais pôde mostrar, com simplicidade, o processo de criação de suas peças. Jovens artesãos da região de Miranda têm se aproximado de seu trabalho, admirando não só a beleza das gamelas, mas a trajetória de vida de uma mulher que construiu seu lugar com as próprias mãos. Em tempos de pressa e produção industrial, Ana representa outra lógica: a do tempo da escuta, do fazer com propósito, do vínculo com a história.

A trajetória de Ana também ecoa o protagonismo das mulheres nas artes manuais. É por meio da oralidade, da prática cotidiana e da convivência que ela preserva e transmite o saber da madeira. Sua força discreta inspira — sobretudo outras mulheres — a reconhecerem o valor de seus próprios fazeres. Em cada oficina improvisada no quintal, em cada conversa com quem a visita, Ana segue plantando sementes para que a tradição das gamelas continue viva, pulsando em outras mãos, em outros tempos.

Ana Vitorino como guardiã de uma arte ancestral e viva

A história de Ana Vitorino é, antes de tudo, a história de uma mulher que fez da madeira sua companheira, sua linguagem e sua resistência. Com mãos firmes e olhos atentos, ela transforma troncos em gamelas, e gamelas em pontes entre passado e presente. Seu ofício, nascido em Três Lagoas e hoje florescendo em Miranda, é mais do que habilidade: é um elo com a terra, com os saberes antigos e com as relações de afeto que envolvem a partilha do alimento, da história e da vida.

Em cada entalhe feito por Ana, pulsa o que chamamos de patrimônio imaterial. Ela é exemplo vivo de como o conhecimento tradicional resiste, mesmo diante das transformações do tempo, quando há quem o cultive com amor e dedicação. Reconhecer mestres populares como ela é essencial para que não percamos essas raízes que sustentam nossa diversidade cultural. O saber de Ana é patrimônio — não apenas do Mato Grosso do Sul, mas do Brasil inteiro.

As gamelas de Ana Vitorino não são apenas utensílios; são testemunhas de uma forma de vida. Representam uma arte que não se separa da função, que não se desconecta da emoção, que carrega o espírito do lugar de onde veio. Que este encontro com sua história nos inspire a olhar com mais atenção para os artesãos e artesãs que, como ela, mantêm vivas tradições que nos alimentam muito além do corpo — nos alimentam de identidade, de pertencimento e de memória.

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