Dona Maria do Rosário, carinhosamente conhecida como Tia Nega, foi uma das artesãs mais antigas e respeitadas da cidade de Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul. Seu nome tornou-se sinônimo de resistência cultural, cuidado com a natureza e delicadeza no fazer manual.
As matérias-primas escolhidas por Tia Nega não eram apenas recursos naturais — eram extensões do seu território e da sua história. O buriti, árvore sagrada do cerrado que cresce em áreas úmidas, como brejos e margens de rios, e a taboa, planta abundante nas margens dos rios e lagoas da região, carregavam nas fibras a identidade local, a sabedoria dos antigos e a poesia silenciosa da natureza.
Com mãos firmes e olhar atento, Tia Nega transformava folhas em arte e arte em herança. Cada trançado, cada curva moldada à mão era também uma forma de contar histórias, preservar memórias e deixar viva uma tradição que, mesmo diante das mudanças do tempo, insiste em florescer.
Raízes profundas em Três Lagoas
Localizada no leste de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas é conhecida por suas águas e sua força industrial, mas guarda também um pulsar discreto e resistente da cultura artesanal. Em meio ao crescimento urbano e à expansão econômica, floresceu — e continua florescendo — um saber que vem da terra, das matas ciliares, das mãos. O artesanato tradicional, muitas vezes invisibilizado, é parte fundamental da alma dessa cidade.
Foi nas margens de rios e lagoas, onde a taboa cresce farta, que Tia Nega teve seus primeiros contatos com as fibras naturais. Ainda menina, aprendeu a observar as mulheres da comunidade trançando palha para usos do dia a dia. Aos poucos, o que era curiosidade infantil tornou-se habilidade, e a brincadeira virou ofício. Sua juventude foi marcada pelo trabalho manual, pelas festas de quermesse e pelas trocas entre vizinhas — momentos onde os saberes se perpetuavam naturalmente.
Tia Nega cresceu em um ambiente profundamente comunitário, onde os laços familiares e o cotidiano rural moldavam a maneira de viver. Tudo se aprendia com o exemplo: plantar, colher, cozinhar, cuidar e, claro, tecer. Foi nesse cenário de simplicidade e solidariedade que ela se formou como guardiã de um saber ancestral. Sua casa, sempre cheia de gente, de vida e de histórias, era um espaço onde o conhecimento circulava entre gerações — não por livros, mas por gestos, conversas e mãos que ensinavam com paciência e carinho.
A arte de trançar o buriti e a taboa
O buriti e a taboa, embora ambos retirados da natureza, possuem características bem distintas. A fibra do buriti, retirada da palmeira típica do cerrado de regiões alagadas e brejos, é mais fina, flexível e delicada, exigindo atenção redobrada no trançado. Já a taboa, planta abundante nas margens de rios e alagados de Três Lagoas, oferece uma fibra mais resistente e volumosa, ideal para peças estruturadas. Tia Nega dominava as nuances de cada uma, respeitando seus tempos, suas texturas e suas resistências naturais.
Ao longo dos anos, Tia Nega desenvolveu e aperfeiçoou técnicas próprias de preparo, trançado e acabamento das fibras. Sabia exatamente como colher, secar e cortar cada folha para garantir durabilidade e beleza às peças. Com mãos firmes e gestos repetidos mil vezes, ela transformava matéria bruta em objeto de arte. Seu trançado tinha ritmo, cadência e alma — como se os fios seguissem uma música que só ela escutava. Era ali, entre a técnica e a intuição, que sua maestria se revelava.
Entre os produtos que saíam das mãos de Tia Nega estavam cestos de vários tamanhos, esteiras que perfumavam o ambiente com cheiro de taboa seca, bolsas resistentes e belas, e até utilitários domésticos e peças decorativas. Cada item tinha utilidade e beleza, equilibrando funcionalidade com expressão cultural. Mais que objetos, eram fragmentos de um modo de vida: simples, sustentável, profundamente ligado à natureza e à coletividade. A arte de Tia Nega era, acima de tudo, uma extensão do seu mundo — um mundo onde cada fio tem sentido, e cada peça conta uma história.
Oficinas, partilhas e a missão de ensinar
Tia Nega não apenas dominava a arte de trançar fibras — ela a compartilhava com generosidade. Com a paciência de quem entende o valor do tempo e do gesto, ela assumiu a missão de ensinar outras mãos a seguir os caminhos dos fios. Via nisso um dever, quase um chamado: se o conhecimento ancestral não fosse passado adiante, morreria com ela. E Tia Nega sabia que saberes como o seu não pertencem a uma só pessoa, mas à comunidade inteira.
Ao longo da vida, Dona Maria do Rosário participou de inúmeras oficinas e ações culturais em Três Lagoas e em municípios vizinhos. Esteve presente em escolas públicas, feiras de artesanato, eventos promovidos por entidades culturais e até em ações ligadas a políticas públicas de apoio ao artesanato. Nessas ocasiões, ensinava não só técnicas, mas também o respeito à natureza, à história de vida de cada artesão e à importância de reconhecer o próprio território como fonte de criação.
O trabalho educativo de Tia Nega deixou marcas profundas. Muitas crianças e jovens tiveram nela seu primeiro contato com o artesanato tradicional, aprendendo a valorizar algo que vinha do quintal, da lagoa, do cerrado. Em centros culturais, suas oficinas se tornaram momentos de encantamento e descoberta; nas feiras, ela não apenas vendia, mas contava histórias, trocava receitas, sorria e ensinava. Seu impacto formativo foi muito além das fibras — ela plantou sementes de pertencimento, identidade e orgulho em cada pessoa que cruzou seu caminho.
Uma tradição que passa de geração em geração
O trabalho de Tia Nega nunca ficou restrito às suas próprias mãos. Desde cedo, ela fez questão de ensinar a arte do trançado para dentro de casa — começando pelos filhos, passando pelas noras, chegando às netas e, com o tempo, também a aprendizes da comunidade. Cada fio de taboa ou palha de buriti trançado era também um elo de transmissão de memória, de afeto e de continuidade. Com seu jeito simples e firme, ela ensinava não apenas como trançar, mas como respeitar o material, o tempo do fazer e a história por trás de cada peça.
O legado de Tia Nega vai além da técnica. Em suas oficinas e ensinamentos familiares, havia sempre algo mais profundo: um jeito de olhar o mundo com delicadeza e resistência. Aprender com ela era mergulhar em um universo onde o tempo tem outro ritmo e a natureza conversa com a cultura. O tear que ela operava — mesmo que invisível — unia passado e futuro, mantendo vivas formas de existência que correm o risco de se perderem no silêncio das gerações que não transmitem seus saberes.
Hoje, sua família segue o caminho que ela abriu. Netas que aprenderam desde pequenas, noras que se encantaram com o modo de fazer, filhos que ajudavam na coleta da matéria-prima — todos, de alguma maneira, carregam um pedaço de sua arte. Esse fazer familiar não é apenas uma forma de sustento, mas um elo afetivo e cultural com a história de Três Lagoas e de tantas mulheres que moldaram sua existência a partir da fibra, do gesto e da memória. Em cada peça feita após sua partida, há um pouco de Tia Nega: sua voz, seu jeito, seu ensinamento.
Resistência e poesia nas fibras do cerrado
Num mundo onde o tempo corre veloz e a cultura popular muitas vezes é deixada à margem, o trabalho de Tia Nega representou um ato de resistência. Suas mãos, ao trançar a palha de buriti e a taboa, resgatavam não só uma técnica ancestral, mas também um modo de vida que insiste em existir. Em cada cesta ou esteira, ela enfrentava o apagamento cultural com a força silenciosa dos gestos repetidos e aprendidos por gerações. Sua arte não era apenas bela — era urgente, necessária, um grito manso contra o esquecimento.
As peças de Tia Nega contavam histórias que não cabem nos livros. Elas falavam das margens alagadas onde a taboa cresce, do buriti que resiste firme no meio do campo, das mulheres que se sentam em roda para trabalhar e conversar. O cerrado sul-mato-grossense estava todo ali: em texturas que lembram folhas, em formas que evocam ninhos, em cores que imitam o barro, o sol e o mato seco. O que para muitos era apenas um capim, nas mãos dela virava memória e paisagem, com a delicadeza de quem conhece a terra por dentro.
Tecer com as próprias mãos, hoje, é mais do que uma escolha estética — é uma ação política. É optar por não se render à produção em massa, é valorizar o tempo do fazer, é manter viva uma relação íntima com a matéria e com o território. Para Tia Nega, o artesanato nunca foi só trabalho: era também uma forma de afirmar sua identidade, sua origem, sua força de mulher do interior que aprendeu a transformar o que a natureza oferece em sustento e arte. Cada peça era poesia e protesto. Um lembrete de que a beleza também pode ser resistência.
Reconhecimento e relevância cultural
Ao longo de sua trajetória, Tia Nega participou de inúmeras feiras de artesanato, encontros culturais e exposições em Três Lagoas e na região. Sua barraca — muitas vezes simples, mas sempre carregada de afeto e cores — chamava atenção pelas peças únicas, feitas com maestria e simbolismo. Ela foi presença constante em festas populares, celebrações religiosas e eventos promovidos por escolas e instituições culturais. Suas esteiras, cestos e bolsas encantavam tanto os moradores locais quanto visitantes de fora, que se impressionavam com a delicadeza e força de seu trabalho. Mais do que vender, Tia Nega apresentava sua arte como uma extensão de sua história de vida.
Para a comunidade artesanal de Três Lagoas, Tia Nega foi — e continua sendo — um nome de respeito. Sua trajetória inspira outras mulheres, especialmente as mais jovens, a valorizarem o que aprendem em casa, com as mais velhas. Seu nome circula em rodas de conversa entre artesãs, suas técnicas são mencionadas em oficinas e suas peças ainda servem como referência para novos trabalhos. Em um cenário onde o saber tradicional muitas vezes é invisibilizado, ela se destacou como um elo entre passado e presente, com simplicidade e dignidade.
A figura de Tia Nega ocupa um lugar especial na memória do artesanato sul-mato-grossense. Sua dedicação à palha de buriti e à taboa ajudou a preservar práticas manuais que poderiam ter se perdido com o tempo. Seu trabalho ultrapassou o valor estético para se tornar também educativo e identitário. Em tempos de homogeneização cultural, ela defendeu — com fios e tramas — a riqueza do regional, do feito à mão, do saber que nasce do chão. Reconhecer Tia Nega é reconhecer o valor da cultura que não está nos museus, mas nas casas, nos quintais e nas mãos de mulheres que seguem criando, resistindo e ensinando.
Mestras que moldam a alma do Brasil
Tia Nega, com sua sabedoria silenciosa e mãos firmes, é uma entre tantas mulheres que carregam a cultura popular brasileira nas palmas. Sua trajetória mostra que arte não é apenas o que se vê nas galerias, mas também o que brota dos quintais, das margens e dos gestos passados de geração em geração. Ao tecer buriti e taboa, ela teceu também memórias, pertencimento e resistência. Mestras como ela não apenas criam peças, mas moldam a alma de um Brasil profundo, muitas vezes esquecido.
A história de Tia Nega é também a história de tantas outras mulheres que aprenderam com as mães e ensinaram às filhas. É urgente reconhecer e apoiar essas mestras — não apenas com aplausos, mas com políticas públicas, visibilidade, acesso a mercados e espaços de formação. O saber ancestral feminino, tão presente na arte popular, é um dos pilares de nossa identidade cultural. Ele merece ser celebrado, estudado e protegido como parte essencial da memória nacional.
Convidamos, por fim, cada leitor a olhar para a arte da palha de buriti com a reverência que ela merece. Cada cesto, esteira ou bolsa não é apenas um objeto: é um pedaço da história do cerrado, do corpo e do tempo de uma mulher como Tia Nega. É necessário apoiar os artesãos locais, consumir com consciência, preservar tradições e lutar para que o artesanato tradicional continue sendo um patrimônio vivo — não apenas do Mato Grosso do Sul, mas de todo o Brasil. Porque onde há uma mestra, há cultura viva pulsando.