Entre o Reconhecimento e a Sobrevivência
O artesanato tradicional ocupa um lugar de prestígio no imaginário cultural brasileiro. Tecidos, cestarias, cerâmicas, entalhes e bordados não são apenas objetos utilitários ou decorativos — são expressões vivas de memória coletiva, identidades locais e modos de vida que atravessam gerações. A cada peça, carrega-se um pedaço da história de uma comunidade, uma técnica ancestral e uma forma de existir no mundo. Esse valor simbólico é frequentemente exaltado em discursos oficiais, eventos culturais e até em políticas de preservação do patrimônio imaterial.
No entanto, por trás desse reconhecimento cultural, esconde-se uma realidade muitas vezes ignorada: a precariedade socioeconômica vivida por quem produz essas peças. Embora sejam celebrados como “guardiões da tradição”, muitos artesãos seguem enfrentando a instabilidade da renda, a informalidade do trabalho e a dificuldade de acessar mercados que valorizem seu fazer de forma justa.
Esse descompasso revela um paradoxo central: o artesanato é culturalmente valioso, mas economicamente desvalorizado. A tradição, nesse contexto, parece garantir prestígio — mas não necessariamente sustento. O reconhecimento simbólico, embora importante, não paga as contas nem assegura dignidade. É como se o “valor cultural” do artesanato fosse uma moeda que não circula nos espaços da economia real.
Neste artigo, vamos refletir sobre os limites da valorização simbólica no artesanato tradicional. Analisaremos como esse reconhecimento, quando não acompanhado de políticas públicas, apoio à comercialização e ações concretas de valorização econômica, pode se tornar um ornamento vazio — bonito aos olhos, mas ineficaz para a sobrevivência de quem vive do ofício. Ao explorar as causas e consequências dessa dissociação entre tradição e renda, propomos também caminhos possíveis para um futuro em que o artesanato seja não apenas admirado, mas efetivamente valorizado em todas as suas dimensões.
O Artesanato como Patrimônio Cultural: Reconhecimento e Limites
O artesanato tradicional brasileiro percorreu um longo caminho para ser reconhecido como parte do patrimônio cultural do país. O que antes era visto apenas como uma atividade do dia a dia — ligada à utilidade doméstica, à sobrevivência e ao cotidiano das comunidades — passou a ser valorizado como símbolo identitário e expressão de uma cultura viva. Esse reconhecimento elevou o artesanato ao campo da memória coletiva, como herança que precisa ser protegida, registrada e celebrada.
Programas como o Registro do Patrimônio Cultural Imaterial, do IPHAN, e políticas estaduais e municipais voltadas à salvaguarda das tradições artesanais contribuíram para essa mudança de status. A mídia também teve papel fundamental, ao destacar mestres e mestras artesãs em reportagens, documentários e exposições. Feiras nacionais, festivais de cultura popular e mostras em museus projetaram o artesanato como expressão legítima e valiosa da diversidade cultural brasileira.
Esse processo de valorização simbólica é importante e, sem dúvida, representa um avanço. Mas ele tem seus limites — sobretudo quando se trata das condições reais de vida dos artesãos. Em muitos casos, o reconhecimento cultural não se converte em valorização econômica. Ou seja: o artesanato é admirado, aplaudido e homenageado, mas não necessariamente comprado por um preço justo ou incluído em políticas de geração de renda sustentáveis.
A raiz desse descompasso está na forma como a sociedade separa “cultura” e “economia” — como se fossem esferas opostas, e não dimensões interligadas da mesma prática. O artesanato é visto, muitas vezes, como algo que deve ser preservado, mas não como algo que deve ser remunerado. Há uma valorização do “fazer com as mãos” que, paradoxalmente, pode resultar em romantização do trabalho artesanal, sem que isso se traduza em melhores condições de vida para quem o realiza.
Outro limite está no próprio sistema de comercialização. O artesanato tradicional enfrenta dificuldades para competir com produtos industrializados, importados ou vendidos em larga escala. Mesmo sendo peças únicas, carregadas de valor simbólico, elas acabam sendo tratadas como “souvenires” ou itens de pouco valor comercial. A ausência de políticas públicas integradas, de incentivo ao consumo consciente e de acesso a mercados justos amplia ainda mais esse fosso entre reconhecimento e renda.
Reconhecer o artesanato como patrimônio cultural é fundamental. Mas isso, por si só, não garante dignidade a quem o produz. É preciso transformar o reconhecimento simbólico em políticas concretas, que considerem o artesanato não apenas como expressão da identidade brasileira, mas também como atividade produtiva essencial, capaz de gerar renda, sustentabilidade e pertencimento. A tradição só continuará viva se quem a sustenta puder viver dela com dignidade.
Economia Criativa e a Falácia da Valorização Automática
A economia criativa ganhou força nos últimos anos como uma alternativa promissora para setores culturais e artísticos que, historicamente, estiveram à margem das políticas econômicas convencionais. Dentro desse guarda-chuva, o artesanato tradicional foi rapidamente incluído como uma das expressões mais potentes da criatividade popular e da geração de valor simbólico. No entanto, a promessa de que essa inclusão traria, automaticamente, melhores condições de vida para os artesãos não se cumpriu para a maioria — especialmente no interior e em regiões periféricas do Brasil.
A lógica da economia criativa pressupõe que criatividade, inovação e identidade cultural são ativos capazes de gerar renda, inclusão e desenvolvimento. Mas para que isso ocorra, é necessário mais do que reconhecer o valor simbólico das criações: é preciso estruturar o ecossistema em que o artesanato se insere. E é aí que mora o primeiro problema. Muitos artesãos não têm acesso à infraestrutura mínima — desde espaços adequados de produção e comercialização até formação técnica, ferramentas de gestão e canais de venda acessíveis. A promessa da valorização esbarra na realidade de precariedade, informalidade e isolamento.
Além disso, o mercado em que o artesanato tradicional circula costuma ser instável, sazonal e dominado por intermediários que muitas vezes capturam a maior parte do lucro. O rótulo “criativo”, por si só, não transforma essas estruturas nem enfrenta as desigualdades históricas que cercam o setor. Pelo contrário: em alguns contextos, ele é usado como uma espécie de maquiagem para manter o status quo, promovendo eventos e vitrines que exaltam a criatividade do artesão, mas que não garantem retorno financeiro consistente nem valorização real do trabalho.
Há ainda um efeito colateral perigoso: ao ser inserido na lógica da economia criativa sem o devido suporte, o artesanato pode ser pressionado a se adaptar a tendências externas, perdendo suas características tradicionais em nome de um design “vendável” ou de um padrão imposto pelo mercado. Isso enfraquece o vínculo cultural das peças com seus territórios de origem, transforma a identidade em mercadoria e expõe o artesão a dinâmicas que nem sempre domina.
Exemplos não faltam. Há iniciativas que conquistam reconhecimento nacional e até internacional, mas onde os artesãos continuam recebendo pouco ou nada, enquanto marcas, ONGs ou projetos de terceiros lucram com o valor agregado da cultura local. A cadeia produtiva permanece desigual, mesmo sob o selo da “economia criativa”. O problema não está na ideia em si, mas em sua aplicação desconectada das realidades locais e da ausência de políticas de inclusão efetiva.
Para que a economia criativa seja realmente transformadora para o artesanato tradicional, ela precisa ser acompanhada de justiça econômica, formação continuada, acesso a redes de comercialização e políticas públicas sensíveis à diversidade cultural. O desafio está em fazer com que o “criativo” não seja apenas um adjetivo bonito, mas um caminho concreto para a autonomia e a dignidade dos que vivem da arte de fazer com as próprias mãos.
O Peso da Tradição sem Mercado
A tradição é, sem dúvida, o coração do artesanato. Cada peça carrega técnicas, histórias, símbolos e modos de fazer que atravessam gerações. No entanto, esse patrimônio vivo — que deveria ser fonte de prestígio e sustentabilidade — muitas vezes se transforma em um fardo quando encontra um mercado que valoriza o simbólico, mas não está disposto a pagar por ele. O que se vê, então, é o paradoxo de um artesanato reconhecido como parte da identidade cultural brasileira, mas que não consegue, sozinho, garantir a renda mínima para quem o produz.
Em muitos casos, a fidelidade à técnica ancestral se torna um obstáculo à comercialização. O tempo de produção, o rigor no uso de materiais naturais, o modo de colheita, o acabamento manual e a resistência em adaptar formatos e cores ao gosto do mercado criam um descompasso entre o que o artesão oferece e o que o consumidor médio espera — e quer pagar. Isso não significa que o artesanato tradicional deva ser modificado ao sabor das tendências, mas revela o desafio de manter a autenticidade sem comprometer a viabilidade econômica.
A tentativa de inovar, por outro lado, carrega seus próprios dilemas. Para muitos artesãos e comunidades, alterar técnicas ou adaptar modelos pode ser visto como uma ameaça à legitimidade de sua tradição. A linha entre atualizar e descaracterizar é tênue e dolorosa. Não raro, mudanças necessárias à sobrevivência econômica são recebidas com receio por mestres e mestras, que temem que a essência de sua cultura se dilua em meio a experimentações descoladas de seu contexto original. E esse medo é legítimo: há inúmeros casos em que a “inovação” apagou o sentido cultural do fazer artesanal, transformando-o em produto genérico para o turismo ou para decoração.
Outro entrave é a própria resistência do mercado. O público que reconhece o valor simbólico de uma peça muitas vezes não está disposto a pagar o preço justo por ela. O artesanato tradicional ainda disputa espaço com produtos industrializados mais baratos, com imitações importadas e com objetos que, embora “inspirados” em técnicas locais, não devolvem valor algum à comunidade de origem. Há um abismo entre o discurso de valorização cultural e a prática de consumo. Muitas pessoas admiram o artesanato, mas na hora de comprar optam por opções mais acessíveis — mesmo que menos autênticas.
Essa dinâmica aprofunda a precariedade do ofício e coloca o artesão diante de escolhas difíceis: adaptar-se ao gosto do mercado e correr o risco de descaracterizar sua produção, ou manter a fidelidade à tradição e enfrentar a insegurança financeira. Para sair desse impasse, é preciso mais do que marketing cultural: é necessário criar mecanismos que valorizem economicamente o que é tradicional, investindo em educação do consumidor, certificações de origem, canais de comercialização justa e políticas públicas que entendam o valor do tempo, do saber e da identidade impressos em cada peça.
Sem essas medidas, a tradição — em vez de ser fonte de sustentabilidade — pode continuar sendo uma camisa de força: rica em sentido, mas limitada em retorno. O desafio é garantir que o valor simbólico do artesanato se traduza, efetivamente, em dignidade econômica para quem o mantém vivo.
O Turismo Cultural e Seus Limites Econômicos
O turismo cultural há muito é visto como uma promessa de valorização para o artesanato tradicional. Cidades históricas, comunidades ribeirinhas, povos originários e vilas do interior são frequentemente incluídas em roteiros turísticos justamente por seu patrimônio imaterial — entre eles, o artesanato. A imagem do artesão em sua casa-oficina, moldando com as mãos o barro, a palha ou a madeira, é vendida como autenticidade, experiência e diferencial. No entanto, por trás dessa vitrine atraente, esconde-se uma realidade que nem sempre beneficia quem produz.
Em muitos contextos, o artesanato se torna vitrine turística, mas não conquista os benefícios prometidos. A valorização simbólica, mais uma vez, não se converte em valorização econômica. Os artesãos se veem expostos, literalmente, ao olhar do visitante, mas continuam à margem das decisões econômicas e políticas que envolvem o turismo local. Há casos em que são tratados mais como “atrativos” do que como protagonistas — exibidos como parte da paisagem cultural, mas com pouca autonomia sobre os lucros gerados por essa exposição.
Um dos principais limites econômicos do turismo como motor para o artesanato é a sazonalidade das vendas. As feiras, festas religiosas, festivais culturais e temporadas turísticas concentram a maior parte da renda dos artesãos em períodos muito específicos do ano. Fora desses momentos, a comercialização praticamente desaparece, deixando lacunas de meses sem renda estável. Isso compromete o planejamento financeiro das famílias e dificulta o investimento em matéria-prima, inovação ou estrutura para produção.
A dependência de eventos e feiras também expõe o artesão a fatores imprevisíveis: mudanças climáticas, corte de verbas públicas, redução no fluxo turístico e crises econômicas podem impactar diretamente seu sustento. Além disso, a participação nesses eventos nem sempre é acessível. Taxas de inscrição, transporte, alimentação e hospedagem fora do local de origem representam custos que muitos artesãos não conseguem cobrir, mesmo quando o evento é gratuito.
Outro ponto crítico é o turismo predatório ou simbólico, que consome as expressões culturais sem garantir retorno justo às comunidades. São muitos os casos em que peças artesanais são compradas a preços irrisórios por atravessadores e revendidas em lojas turísticas com margens altíssimas — o que desvirtua o processo e retira o protagonismo do artesão. Há ainda situações em que as técnicas e modelos são copiados ou apropriados por grandes marcas e revistos em larga escala, apagando a origem e o contexto cultural das peças.
O turismo simbólico, por sua vez, muitas vezes transforma o artesanato em espetáculo, reduzindo sua complexidade a uma imagem folclórica. O que era prática de resistência e identidade se torna performance para agradar visitantes — o que pode gerar desgastes culturais e até constrangimentos. Quando a lógica do mercado turístico se impõe sobre a lógica da cultura local, há risco de descaracterização, esvaziamento simbólico e exploração.
Isso não significa que o turismo deva ser descartado como estratégia de valorização do artesanato — pelo contrário. Ele pode ser uma ferramenta poderosa de geração de renda, desde que estruturado com responsabilidade e equidade. Para isso, é preciso criar políticas de turismo de base comunitária, fortalecer a cadeia produtiva local, garantir canais diretos de venda entre artesãos e visitantes e incluir os próprios artesãos nas decisões sobre como sua cultura será apresentada.
Mais do que vender peças, é preciso garantir que o turismo cultural não se resuma à vitrine: que ele seja ponte, troca justa e instrumento de reconhecimento — simbólico e financeiro — para os guardiões das tradições que tanto encantam quem passa por elas.
O Valor do Imaterial e a Invisibilidade do Trabalho
O artesanato tradicional carrega em si uma carga simbólica poderosa: ele evoca ancestralidade, pertencimento, identidade. É comum que o “fazer manual” seja exaltado em discursos institucionais, exposições culturais e programas televisivos como expressão autêntica da cultura de um povo. No entanto, essa valorização do aspecto imaterial muitas vezes convive — e até colabora — com uma profunda invisibilidade do trabalho concreto envolvido na produção artesanal.
Romantizar o ato de fazer com as mãos é uma armadilha comum. A cena do artesão concentrado, moldando o barro ao entardecer ou tecendo sob a sombra de uma árvore, é bonita — mas esconde a complexidade da jornada. Acordar cedo, buscar matéria-prima, produzir em condições precárias, vender, negociar, divulgar e, muitas vezes, ainda enfrentar preconceito ou desvalorização. Cada peça é fruto de um conjunto de decisões técnicas e estéticas, além de uma carga física e emocional muitas vezes ignorada.
Essa romantização se entrelaça com um discurso ainda mais problemático: o da “vocação” artesanal. A ideia de que o artesão “nasce com o dom”, “faz por amor”, ou “trabalha como forma de manter a tradição” pode parecer elogiosa, mas é, na prática, uma forma de deslegitimar sua atividade como trabalho profissional. Quando se naturaliza a ideia de que o fazer artesanal é um chamado e não uma escolha econômica e laboral, cria-se um ambiente onde a precariedade é normalizada — como se o prazer pela atividade bastasse para compensar a ausência de remuneração justa.
Esse discurso desmobiliza a luta por direitos. Se o artesanato é visto como expressão espontânea de uma cultura, como cobrar políticas públicas, previdência, acesso a crédito, espaços de comercialização e regulamentações específicas? O “amor pelo ofício” não deveria ser argumento para ignorar as condições de trabalho, mas muitas vezes é usado para justificar a ausência de reconhecimento institucional e financeiro.
Nesse cenário, a falta de remuneração justa se transforma em violência — simbólica e econômica. É simbólica porque nega o valor real do trabalho e reduz o artesão a uma caricatura do “guardião da tradição”. É econômica porque impede a construção de uma vida digna a partir daquilo que é reconhecido como patrimônio cultural. Essa contradição é uma das grandes injustiças do campo do artesanato tradicional: o que é celebrado enquanto símbolo nacional é, muitas vezes, negligenciado em termos de políticas públicas e renda efetiva.
Valorizar o imaterial não pode ser desculpa para apagar o esforço do material. Preservar técnicas, repassar saberes e criar com as mãos exige tempo, investimento e estrutura. É urgente romper com o romantismo que oculta a realidade do fazer artesanal e adotar uma perspectiva que reconheça o artesanato como trabalho legítimo — e, como tal, digno de remuneração justa, proteção social e espaço no debate econômico.
Reconhecer o valor imaterial do artesanato é essencial, sim — mas esse valor só se sustenta quando vem acompanhado do reconhecimento concreto do trabalho de quem o torna possível.
O Papel do Estado e das Políticas Públicas na Superação do Simbolismo Estéril
A valorização simbólica do artesanato, embora importante para o reconhecimento da diversidade cultural brasileira, torna-se insuficiente — ou mesmo vazia — quando não vem acompanhada de medidas concretas de apoio à sustentabilidade econômica dos artesãos. É nesse ponto que o papel do Estado, através de políticas públicas bem estruturadas, se revela não apenas necessário, mas urgente.
Durante décadas, programas governamentais voltados ao artesanato focaram, majoritariamente, na preservação do patrimônio imaterial, no mapeamento de técnicas tradicionais e na promoção de eventos culturais. Embora essas ações sejam relevantes, muitas delas ficaram restritas ao plano simbólico — premiando mestres com diplomas, incluindo artesãos em catálogos ou conferindo títulos de “patrimônio vivo” — sem, contudo, transformar esse reconhecimento em melhoria efetiva de renda, condições de produção ou inserção no mercado.
A realidade dos artesãos, especialmente no interior do país, continua marcada por baixa renda, acesso precário a crédito, falta de capacitação continuada e ausência de canais eficientes de comercialização. O artesanato, mesmo reconhecido oficialmente como parte da economia criativa, muitas vezes é tratado como atividade paralela, informal ou romântica — e não como parte integrante da economia produtiva e dos arranjos locais de desenvolvimento.
No entanto, algumas iniciativas têm conseguido romper esse ciclo e mostrar caminhos possíveis. Projetos como o Programa do Artesanato Brasileiro (PAB), em alguns estados, têm conseguido articular ações de qualificação profissional com acesso a feiras nacionais e internacionais. O selo “Produto do Brasil”, por exemplo, ajuda a certificar a origem e autenticidade de peças artesanais, aumentando seu valor agregado. Municípios que criam leis específicas para o artesanato, oferecendo espaços públicos permanentes de comercialização e isenção de taxas, contribuem significativamente para a estabilidade dos produtores.
Outros bons exemplos vêm da articulação com políticas de economia solidária, em que cooperativas de artesãos recebem apoio técnico, contábil e jurídico para funcionar de forma profissionalizada. Projetos em parceria com universidades — por meio de incubadoras culturais ou de extensão universitária — têm promovido intercâmbios valiosos entre saberes populares e conhecimentos técnicos em design, marketing, gestão e inovação.
Mais do que ações pontuais, no entanto, é preciso reformular o olhar que se tem sobre o artesão: de alguém que “guarda tradições” para alguém que atua economicamente, gera renda, movimenta cadeias produtivas e contribui para a sustentabilidade de comunidades inteiras. Isso implica tratá-lo como sujeito econômico e cultural, reconhecendo tanto seu papel simbólico quanto seu direito à profissionalização, previdência, remuneração justa e políticas públicas integradas.
Para tanto, o Estado precisa:
- Desenvolver programas de formação continuada, que unam saberes tradicionais a inovações em design e gestão;
- Ampliar e qualificar os canais de comercialização (presenciais e digitais), garantindo logística, visibilidade e mercado justo;
- Criar linhas de crédito específicas para artesãos, com taxas acessíveis e condições compatíveis com a realidade da produção artesanal;
- Estimular o consumo consciente por meio de campanhas educativas, fomentando a valorização do artesanato como bem cultural e produto economicamente relevante;
- Integrar o artesanato a políticas de desenvolvimento regional, reconhecendo sua força na geração de empregos, identidade local e turismo sustentável.
Superar o simbolismo estéril significa transformar o reconhecimento cultural em reconhecimento material. É dar ao artesão não só um lugar na memória coletiva, mas também no orçamento público, nos mercados e nas políticas de desenvolvimento. É enxergar que preservar a tradição exige mais do que reverência: exige investimento, escuta ativa e compromisso real com a dignidade de quem transforma cultura em sustento com as próprias mãos.
Caminhos para Unir Tradição e Sustentabilidade Financeira
A conciliação entre o valor simbólico do artesanato e sua viabilidade econômica não é apenas possível — ela é necessária. E já vem sendo trilhada por artesãos, coletivos e comunidades que encontraram formas criativas de transformar a tradição em fonte digna de renda, sem abrir mão da identidade cultural. Ao contrário do que muitos pensam, inovação e tradição não são forças opostas, mas podem caminhar lado a lado, desde que haja apoio, estrutura e respeito ao fazer artesanal.
Experiências exitosas de articulação entre tradição, inovação e mercado justo têm surgido em diferentes cantos do Brasil. Um exemplo inspirador vem do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, onde artesãs do barro conseguiram fortalecer sua produção através de oficinas de design, acesso a editais e parcerias com instituições de ensino. Sem abandonar a estética própria da região, criaram novas linhas de peças que dialogam com o mercado contemporâneo e ampliaram seus pontos de venda para além das feiras locais.
Em Mato Grosso do Sul, o fortalecimento do artesanato indígena e ribeirinho tem ocorrido por meio de projetos de economia criativa com foco em capacitação e protagonismo comunitário, como o apoio a feiras, rotas turísticas e estratégias digitais que colocam as peças no mundo sem mediadores exploratórios.
O papel das cooperativas, associações e redes solidárias é central nesse processo. Quando organizados coletivamente, os artesãos têm mais força para negociar preços, buscar capacitações, acessar políticas públicas e garantir canais de venda mais estáveis. As cooperativas permitem a distribuição mais justa dos lucros, além de fomentar a troca de conhecimentos e a construção de uma visão de longo prazo para o desenvolvimento local. Também facilitam a obtenção de certificações que agregam valor aos produtos e os protegem contra falsificações e desvalorização.
Redes como a Rede Artesol ou a Central do Cerrado, por exemplo, atuam como pontes entre os saberes tradicionais e o mercado justo, promovendo o escoamento de produtos com transparência, rastreabilidade e respeito à origem cultural. Elas também funcionam como espaços de formação, onde os artesãos podem aprender sobre precificação, comunicação visual, logística e storytelling.
Mas para que essa engrenagem funcione de maneira sustentável, é fundamental investir em educação empreendedora e fortalecimento das cadeias produtivas locais. Isso não significa transformar o artesão em empresário no sentido estrito, mas sim capacitá-lo para entender o valor do seu tempo, o custo da sua matéria-prima, as estratégias de posicionamento no mercado e as possibilidades de inovação com base no seu repertório cultural.
A certificação de origem, identidade cultural ou qualidade artesanal pode ser outro caminho valioso. Esses selos, quando bem aplicados, aumentam a confiança do consumidor, fortalecem o produto como bem diferenciado e garantem que os benefícios econômicos retornem à comunidade produtora. Eles são especialmente relevantes em tempos de turismo cultural, consumo consciente e busca por autenticidade.
Por fim, o fortalecimento das cadeias produtivas locais — desde o acesso à matéria-prima até a comercialização — garante que os recursos circulam na própria comunidade, estimulando economias locais resilientes e comprometidas com a preservação ambiental e cultural. Nesse sentido, políticas públicas integradas, com foco territorial e multissetorial, são indispensáveis.
Unir tradição e sustentabilidade financeira exige visão ampla, sensibilidade e compromisso com a justiça econômica e cultural. E passa, necessariamente, por dar voz ao artesão como protagonista — não como peça decorativa de políticas culturais, mas como sujeito ativo na construção de futuros mais dignos, criativos e enraizados.
Nem Só de Símbolos Vive o Artesão
A trajetória do artesanato no Brasil é marcada por uma contradição gritante: enquanto suas peças são celebradas como expressões autênticas da identidade cultural brasileira, seus criadores muitas vezes vivem à margem da renda digna. A valorização simbólica, ainda que importante, não garante comida na mesa nem continuidade da tradição. Ao contrário, quando dissociada de políticas de incentivo à comercialização justa e ao fortalecimento das cadeias produtivas, ela pode até se tornar um fardo — enaltece-se a cultura, mas se esquece quem a mantém viva.
Esse cenário impõe um chamado urgente à reflexão. Para quem consome artesanato, é hora de ir além do encantamento estético. Que histórias estão por trás daquela peça? Quem a fez? Em que condições? Praticar o consumo consciente, nesse caso, é escolher não apenas um objeto bonito, mas contribuir para a sustentabilidade de modos de vida que resistem há gerações, muitas vezes com escasso apoio institucional.
Do lado do poder público, das instituições culturais e da sociedade civil, é preciso deixar para trás a ideia de que o artesanato se sustenta apenas com homenagens, títulos e exposições. O artesão é um trabalhador. Merece remuneração compatível com seu tempo, sua técnica e sua relevância cultural. O reconhecimento simbólico precisa caminhar lado a lado com políticas estruturantes, que promovam a autonomia econômica e o protagonismo desses sujeitos nos territórios onde vivem e produzem.
Unir tradição à sustentabilidade financeira não é um luxo — é uma condição para que o artesanato continue sendo, de fato, um patrimônio vivo. E isso só será possível quando olharmos para o artesão como ele realmente é: não apenas guardião de saberes, mas também cidadão que produz riqueza, forma comunidades e transforma o mundo com as próprias mãos.