Entre o Fio e a Memória: O Caminho de Dona Josefa Mazarão no Artesanato de Caarapó

Entre o Fio e a Memória

Caarapó, uma pequena cidade no Mato Grosso do Sul, é marcada por sua simplicidade, pela riqueza de suas paisagens e pela força de suas tradições. É aqui que, entre o verde do cerrado e o calor das mãos que trabalham a terra, nasce a história de Dona Josefa Mazarão, uma das grandes artesãs da região. Seu trabalho vai além da criação de peças artesanais; ele é um fio que conecta passado e presente, que preserva a memória de uma cultura e transmite o saber de geração para geração. Dona Josefa não é apenas uma artesã, mas também uma guardiã do patrimônio cultural de Caarapó, contribuindo de maneira significativa para a valorização do artesanato tradicional e a continuidade de técnicas que correm o risco de se perder com o tempo.

O título “Entre o Fio e a Memória” simboliza perfeitamente a jornada de Dona Josefa. O fio, em seu trabalho, representa a continuidade, o entrelaçamento das tradições familiares e culturais, e o ponto de partida de suas criações. A memória é o que confere sentido ao seu fazer: as histórias que ela tece em cada manta, em cada poncho, são ecos de um tempo que ela não deixa morrer. Em cada ponto, Dona Josefa preserva a memória de um passado vivido, de uma cultura que, através das suas mãos, se mantém viva e relevante até hoje.

Esse título, portanto, é um reflexo de sua trajetória pessoal e de sua imensa contribuição para a preservação e disseminação do artesanato de Caarapó, ao mesmo tempo que celebra a memória daquelas que vieram antes dela e a tradição que segue. Ao olharmos para o trabalho de Dona Josefa, vemos como, através do fio, ela tece a história de sua própria vida e a de sua comunidade, garantindo que as gerações futuras conheçam e valorizem suas raízes.

O Início de uma Jornada

Dona Josefa Mazarão nasceu em 13 de outubro de 1955, na cidade de Castilho, São Paulo. Filha de Regina Demétrio Marques e o saudoso pai, que faleceu quando ela ainda era criança, Josefa teve que crescer sem a presença paterna, sendo criada ao lado de suas irmãs em um ambiente onde o amor, a união e o trabalho duro eram as bases que sustentavam a vida familiar. Sua infância foi marcada por desafios, mas também por fortes laços familiares, que moldaram seu caráter e sua visão de mundo.

Após a perda precoce do pai, a vida de Dona Josefa se desenrolou com o apoio incondicional de sua mãe, Regina, que sempre fez questão de transmitir aos filhos os valores da perseverança e do cuidado com o próximo. Foram essas lições que a acompanharam ao longo de sua vida e a ajudaram a enfrentar as adversidades que surgiram em seu caminho.

Josefa passou por várias cidades do Mato Grosso do Sul, morando em locais como Montese, Cristalina, Fazenda Cuiabazinho e, finalmente, Caarapó, onde encontrou um lar definitivo e, também, o início de uma nova etapa em sua vida. A mudança para Caarapó, com sua simplicidade e acolhimento, foi um divisor de águas para Dona Josefa, que encontrou ali as raízes para sua história no artesanato.

Foi em Caarapó que o artesanato entrou de forma definitiva na vida de Dona Josefa. Em 1997, o destino a levou ao encontro de figuras que seriam fundamentais em sua jornada: Dona Luiza e Dona Mari Rosa. Ambas, com sua vasta experiência no ofício, foram as primeiras a ensinar Dona Josefa a técnica de fiar, algo que a encantou e despertou sua paixão. O simples ato de fiar, com suas mãos e com a lã de carneiro, se tornaria o alicerce de uma arte que ela levaria para o resto de sua vida.

Essas primeiras trocas de conhecimento foram fundamentais, mas foi a orientação de Maria Elena Boskilha que ampliou horizontes para Dona Josefa. Maria Elena não apenas ensinou técnicas mais refinadas de fiação, mas também abriu portas para que Dona Josefa participasse de iniciativas mais amplas, como parcerias com o Sebrae e a Fundação de Cultura do MS. A visão empreendedora e o apoio de Maria Elena foram cruciais para que Dona Josefa desse o primeiro passo em direção à profissionalização de seu trabalho artesanal.

Aos poucos, Dona Josefa foi percebendo que o artesanato não era apenas uma forma de gerar renda, mas uma maneira de preservar uma tradição cultural que ameaçava desaparecer. Sua paixão pelo ofício e sua dedicação ao aprendizado se converteram em um legado que, com o tempo, ultrapassaria as fronteiras de Caarapó e se tornaria referência para outros artesãos da região.

A Experiência na Vaca Mecânica

Em meio à rotina de trabalho e às exigências do cotidiano, Dona Josefa Mazarão encontrou um caminho silencioso e potente de expressão: o artesanato. Naquele período em que atuava em uma unidade de produção de leite de soja em Caarapó — conhecida na época como Vaca Mecânica —, o artesanato ainda era uma atividade paralela, mas já pulsava com força em sua vida.

Mesmo em um espaço improvisado, separado das demais funções da fábrica, Dona Josefa reservava tempo para se dedicar à fiação manual, com lã de carneiro lavada e preparada por ela mesma. O córrego próximo ao local se tornava parte do processo: ali, ela lavava cuidadosamente a lã, limpando as impurezas, conectando-se com um fazer ancestral que exige paciência e profundo respeito pela matéria-prima. Mais do que técnica, o que nascia ali era um modo de vida.

Foi nesse período que o artesanato deixou de ser apenas uma prática espontânea e ganhou contornos de projeto pessoal. Dona Josefa já compreendia, de forma intuitiva, que cada fio fiado carregava mais do que função: carregava memória. As mãos que preparavam, cardavam e fiavam também contavam histórias — histórias de sua infância, de sua família, do interior do estado e das mulheres que vieram antes dela.

A convivência com outras pessoas no ambiente de trabalho também contribuiu para esse amadurecimento. Conversas simples no dia a dia ajudaram a moldar sua visão de mundo, despertando a percepção de que seu fazer tinha valor cultural. Com o tempo, o artesanato foi se afirmando não apenas como ocupação, mas como identidade. A lã, que antes era só matéria-prima, passou a ser símbolo: do cuidado, da permanência, da resistência e da criatividade.

Esse período foi, assim, um marco silencioso, mas transformador. Em meio à simplicidade do local, Dona Josefa consolidou o início de sua trajetória como artesã — uma mulher que, entre a rotina e a criação, entre o fio e a memória, tecia muito mais do que produtos: tecia raízes e futuro.

O Desenvolvimento e a Tradição

Ao longo dos anos, Dona Josefa Mazarão se dedicou a aprimorar suas habilidades artesanais, absorvendo tanto a técnica quanto o espírito do ofício. Um dos marcos mais significativos em sua jornada foi o aprendizado e o aperfeiçoamento das técnicas de fiação manual, um processo meticuloso que exigia paciência e precisão. Foi nessa fase que ela se tornou verdadeiramente íntima da lã de carneiro e de outros materiais naturais, os quais ela transformava em fios, tecidos e peças artesanais com um toque único, que carregavam consigo a essência da tradição e da cultura local.

O aprendizado da fiação manual não foi algo que surgiu de forma instantânea. Ao contrário, Dona Josefa dedicou-se à técnica com afinco, procurando entender cada detalhe, cada movimento necessário para transformar a lã em fios fortes e maleáveis. Para isso, ela contou com o auxílio de pessoas chave em sua vida, como Dona Luiza e Dona Mari Rosa, que a iniciaram nos primeiros passos dessa arte. A partir desse momento, ela não apenas dominou o processo, mas passou a adicionar toques pessoais, criando uma identidade única em seu trabalho.

Porém, a fiação foi apenas o começo. Dona Josefa logo se aventurou nas técnicas de tingimento natural, uma arte ancestral que utiliza cascas de árvores, raízes, folhas e outras plantas para criar cores vibrantes e duradouras. O uso de tinturas naturais, além de preservar o método tradicional, trouxe um novo significado ao seu trabalho. O processo de tingir a lã com produtos da natureza passou a ser uma forma de se conectar ainda mais com a terra e com a cultura de seu povo. Cada cor resultante das plantas e cascas tinha um valor simbólico e representava um elo com o passado, com as raízes de sua terra, algo que Dona Josefa preservava com muito carinho.

Com o passar dos anos, Dona Josefa foi se tornando uma verdadeira mestra da fiação e do tingimento. Suas peças, que antes eram simples criações para o cotidiano, começaram a tomar formas mais elaboradas e técnicas. As mantas, os ponchos, os cachecóis e outros itens passaram a ter um padrão de qualidade superior, o que chamou a atenção de feiras e eventos, locais onde ela começou a expor suas criações e a se conectar com o público de outras regiões.

O equilíbrio entre preservar a tradição e atender às novas demandas do mercado foi uma habilidade que Dona Josefa cultivou ao longo de sua carreira. Ela entendia a importância de manter viva a memória artesanal, especialmente em um mundo que, cada vez mais, se afastava dos processos manuais em prol da produção em massa. Portanto, em cada peça que criava, ela incorporava técnicas que eram passadas de geração em geração, preservando os detalhes que tornavam o artesanato tão especial.

Mas Dona Josefa também sabia que a sobrevivência do artesanato estava, em certa medida, em sua capacidade de se adaptar às mudanças. Foi assim que ela começou a participar de feiras e eventos, onde suas peças não apenas eram vendidas, mas também serviam como uma forma de ensino. Cada encontro com outros artesãos, cada exposição, era uma oportunidade para ela mostrar ao público não apenas a beleza de suas criações, mas a importância do trabalho manual como expressão cultural. Ao se apresentar em feiras, ela não só preservava a memória, mas também ajudava a moldar um futuro para o artesanato, onde tradição e inovação caminhavam lado a lado.

O respeito pelas técnicas tradicionais, junto à sua habilidade em adaptá-las às novas exigências do mercado, fez de Dona Josefa uma referência no artesanato de Caarapó. Sua história é, em muitos aspectos, um reflexo da maneira como o passado e o presente podem se entrelaçar para criar algo duradouro, com raízes profundas e relevância no contexto atual.

Parcerias e Reconhecimento

O caminho de Dona Josefa Mazarão como artesã não foi trilhado sozinha. Além da dedicação pessoal e do domínio técnico, sua trajetória foi impulsionada por importantes parcerias institucionais, que desempenharam um papel fundamental na valorização do seu trabalho e na expansão do alcance de sua arte. Entre essas instituições, destacam-se o Sebrae e a Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, que foram essenciais tanto na sua formação continuada quanto na viabilização de oportunidades concretas para que sua produção artesanal alcançasse novos públicos.

Com o apoio do Sebrae, Dona Josefa teve acesso a oficinas, cursos e capacitações que aprimoraram não apenas sua técnica, mas também sua visão empreendedora. A profissionalização do artesanato exigia mais do que o domínio da fiação e do tingimento — era necessário entender sobre precificação, atendimento ao cliente, exposição de produtos e até mesmo marketing. O Sebrae foi, nesse sentido, um divisor de águas, abrindo portas e fornecendo ferramentas que permitiram que o artesanato deixasse de ser apenas uma atividade doméstica para se tornar uma fonte de renda sólida e estruturada.

Já a Fundação de Cultura do MS teve um papel decisivo na inserção de Dona Josefa no circuito das feiras, mostras e eventos culturais. Foi através dessa instituição que suas peças chegaram a palcos nacionais, como as novelas da TV Globo. Um produtor de arte, em busca de elementos que traduzissem a identidade do interior do Brasil, foi direcionado à associação de artesãos de Caarapó por meio da Fundação. De lá, levou mantas, ponchos e outras peças produzidas por Dona Josefa, que acabaram compondo o cenário de novelas como Terra e Paixão e Pantanal. Neste último caso, inclusive, o cantor Almir Sater — um dos símbolos da cultura regional — adquiriu diretamente de Dona Josefa uma manta e um poncho em uma feira, levando consigo não apenas um produto, mas toda a história e a alma contida naquelas peças.

Esses momentos de visibilidade foram mais do que conquistas individuais — representaram o reconhecimento de uma trajetória de persistência e talento, além de lançarem luz sobre a riqueza do artesanato sul-mato-grossense. Participar de feiras como as de Corumbá, Bonito, Campo Grande, Brasília, São Paulo e Belo Horizonte deu a Dona Josefa a chance de trocar experiências com outros artesãos e de mostrar seu trabalho para um público mais amplo e diverso. Cada exposição era uma celebração da cultura regional, mas também uma reafirmação de que o artesanato tradicional tem lugar e valor na economia criativa contemporânea.

Esses reconhecimentos não vieram apenas na forma de vendas ou convites para eventos. Vieram também no orgulho com que sua história começou a ser contada por outros — seja pela imprensa local, seja pelos próprios moradores de Caarapó, que passaram a enxergar na figura de Dona Josefa uma guardiã da cultura da cidade. Ao transformar a lã em arte e as memórias em legado, ela provou que o saber popular, quando respeitado e cultivado, tem o poder de atravessar fronteiras e ocupar os mais diversos espaços — da feira à televisão, do anonimato ao reconhecimento nacional.

O Legado de Dona Josefa Mazarão

Importância para a comunidade de Caarapó e além

Dona Josefa Mazarão é mais que uma artesã: é uma referência viva da memória cultural de Caarapó, cidade sul-mato-grossense cuja identidade está profundamente enraizada em tradições rurais, saberes manuais e uma forte ligação com a terra. Seu trabalho, nascido da simplicidade da lã lavada no córrego e da dedicação silenciosa nos bastidores da antiga Vaca Mecânica, se transformou em símbolo de resistência cultural e inspiração comunitária.

O impacto de Dona Josefa não se mede apenas em peças produzidas ou prêmios recebidos. Ele se vê no olhar das mulheres que encontraram no artesanato um caminho para a autonomia financeira, nos jovens que passaram a valorizar a história do lugar onde vivem, e nas rodas de conversa onde se tecem fios e memórias, entrelaçando presente e passado. Em Caarapó, sua presença moldou não apenas o cenário artístico, mas também as possibilidades econômicas e sociais de muitas famílias que viram no seu exemplo um futuro possível.

Passando adiante o conhecimento

Consciente de que tradição só se mantém viva quando é compartilhada, Dona Josefa nunca guardou seus conhecimentos para si. Ao contrário: ensinou, demonstrou, incentivou. O gesto de fiar virou ensinamento; o tingimento com cascas virou oficina. Seu papel como mestra artesã ultrapassou os limites da técnica — ela transmitiu também valores, disciplina, respeito à natureza e orgulho pelo fazer manual.

Esse compromisso com a formação de novos artesãos se consolidou com a estruturação de projetos dentro da associação que fundou. Com a ajuda da filha Zenilda, economista e gestora pública, a família passou a coordenar, desde 2020, três projetos voltados à geração de renda e ao fortalecimento do artesanato local. Um desses projetos tem como foco justamente a continuidade do trabalho de Dona Josefa, com oficinas regulares de tecelagem e tingimento natural, garantindo que as técnicas tradicionais sigam vivas e pulsantes.

Conexão com o presente

O fio que Dona Josefa aprendeu a fiar manualmente, décadas atrás, continua a atravessar gerações. Seu filho caçula, João, herdou naturalmente o dom da tecelagem. Hoje, é ele quem dá forma a novas peças, dando continuidade a uma linhagem que não apenas produz objetos, mas carrega uma história. O trabalho da família Mazarão, hoje organizado de forma mais estruturada por Zenilda, dialoga com os desafios do mundo contemporâneo — como a sustentabilidade, a economia criativa e a valorização de identidades locais.

Mesmo com os avanços tecnológicos e a globalização da produção, as peças de Dona Josefa continuam relevantes porque carregam algo que nenhuma máquina reproduz: o tempo humano. A manta feita à mão, o poncho tingido com casca de árvore, o fio fiado com paciência no tear artesanal — tudo isso conta uma história que resiste à pressa do mundo moderno. E essa história é essencial. Ela nos lembra de onde viemos e do valor das coisas feitas com cuidado, respeito e intenção.

A lição de Dona Josefa para o futuro

Dona Josefa Mazarão nos ensina que preservar a cultura não é um ato de resistência passiva, mas de ação contínua e afetuosa. Seu legado está nas mãos que aprendeu a ensinar, nos fios que se recusou a deixar desaparecer, nas feiras onde ergueu sua barraca com orgulho, e nas famílias que hoje têm no artesanato um novo horizonte de vida.

Ela nos mostra que tradição e inovação não são opostos, mas partes de um mesmo processo: o de honrar o passado para criar um futuro mais consciente e enraizado. Ao transformar o comum em arte, o cotidiano em memória, e a lã em símbolo, Dona Josefa construiu um legado que atravessa o tempo e inspira a permanência do humano no que fazemos.

O fio que ela fiou não termina — ele segue, entrelaçando vidas, sonhos e identidades. E enquanto houver alguém disposto a aprender, a fiar, a tingir com as cores da terra, a história de Dona Josefa continuará viva.